Por Sidiney Breguêdo
Nenhum Estado pode ser chamado de
democrático de direito se aceita a presunção de culpa. Aceitar tal assertiva
talvez seja tão grave quanto aceitar tribunais de exceção. E nem a primeira,
nem o segundo são aceitos no nosso Direito. Caso fosse possível, certamente,
seria comum tragédias gregas, como aquelas vistas nos textos de William Shakespeare. Numa delas, Otelo mata a
mulher amada porque acreditava que ela o estava traindo. Todavia, o grande
general foi vítima de um embuste tramado pelo invejoso personagem Lago, que
teve a parceria da própria mulher. Mas esta, arrependida, acaba por revelar a
trama a Otelo, que ao saber que a amada nada havia feito se mata também.
Esta tragédia não existe somente na
literatura. Ela acontece em nossos dias, acima de tudo quando nos esquecemos do
princípio da presunção de inocência. Basta ver a decisão levada a efeito pela
juíza Clarice Maria de Andrade Rocha, aquela que mandou prender numa cela uma
menina de 15 anos na companhia de vinte e oito outros marginais do sexo
masculino, na cidade de Abaetetuba, no Pará. Depois ela foi punida, ou seja,
aposentada, nos termos da decisão do CNJ, como segue:
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR
N° 0000788-29.2009.2.00.0000
Rel. CONSELHEIRO FELIPE LOCKE
CAVALCANTI
Requerente: CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA
Requerida: Juíza CLARICE MARIA DE
ANDRADE
Assunto: ATUAÇÃO FUNCIONAL DE
MAGISTRADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARÁ
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ. INFRAÇÕES AOS DEVERES FUNCIONAIS DA
MAGISTRATURA. CONFIGURAÇÃO.
I – O Juiz de Direito ao examinar o
auto de prisão em flagrante delito torna-se responsável pela prisão levada a
efeito bem como pela regularidade do encarceramento do preso. (grifei)
II – Impossibilidade de manutenção de
presa do sexo feminino em carceragem única ocupada por detentos do sexo
masculino.
III – Descumprimento do preceito
fundamental contido no artigo 5º, inciso XLVIII, da Constituição Federal.
IV – Utilização de documento
ideologicamente falso com fim de justificar a grave omissão perpetrada.
V – Infringência ao artigo, 35,
incisos I e III, da LOMAN.
VI – Procedência do Procedimento com
a aplicação da pena de aposentadoria compulsória, com proventos proporcionais
ao tempo de serviço, de acordo com os artigos 28 e 42, V, todos da Lei
Complementar nº 35, de 14.03.79.
No entanto, aquela pobre garota
paraense já havia sido violentada pela turba estúpida dos encarcerados, o que
gerou para ela um tratamento numa clínica próxima de Brasília. A garota caiu de
vez no mundo do crime. E de quem terá sido a culpa, senão daquela juíza tão
distante do princípio da presunção de inocência? Certamente, se Otelo tivesse
examinado melhor as provas, e ele escutasse as súplicas de sua mulher, a
personagem Desdêmona, não teria a matado. O ciúme não o teria ferroado,
fazendo-o destruir a possibilidade de alcançar a verdade.
É por isso que o princípio da
presunção de inocência é tão importante. Está previsto no art. 5.º, LVII da
Constituição Federal de 1.988, nestes termos: “Ninguém será considerado culpado
até o transito em julgado de sentença penal condenatória”. É verdade que existe
as prisões cautelares, aquelas que podem ser feitas em flagrante,
preventivamente ou temporariamente. Nenhuma destas três prisões estaria a
desafiar tal princípio. Isso se a liberdade não fosse a regra, mas é. Sendo a
liberdade a regra não podemos aceitar prisões com o mínimo de fundamentação,
calcadas apenas na fundamentação jurídica e dissociada dos fatos concretos da
vida.
Quanto a isso, tudo bem, até certo
ponto. É preciso buscar o equilíbrio entre a liberdade do indivíduo e o direito
de punir do Estado. Senão desceremos desgovernados a vala do casuísmo. Assassinaríamos
o que há de mais precioso em nosso tempo. Não há vida digna sem liberdade. Razão
pela qual Otelo torna-se um parâmetro adequado para tal arrazoado. Porque, da
mesma forma que não é absoluta a presunção de inocência, também é totalmente
sem nexo a presunção de culpa. E, com esta presunção de culpa, a agressão do
Estado antes do trânsito em julgado.
Ora, se Otelo continua a ser lida e
encenada tanto tempo após William Shakespeare a escrever, isso não se
deve apenas ao fato de o texto ser primoroso. A verdade é que a peça toca em questões
dramáticas da nossa vida cotidiana. De forma que está sempre em evidencia. O nosso
Direito Penal tratou de facilitar a utilização de meios coativos contra o
infrator penal, mesmo que ele seja mero suspeito. Portanto, são legítimos,
durante a persecução penal, o constrangimento do inquérito policial, os interrogatórios
e as prisões cautelares. Todavia, as medidas próprias da execução não podem ser
aplicadas ao acusado. É difícil entender isso, até mesmo porque após a prisão
não parecem ter outras medidas mais graves. Todavia, é da presunção de inocência
que decorre que o sujeito somente pode ser processado pelos crimes previstos na
lei, tem assegurado o devido processo legal, não pode ser julgado sem citação
regular, a favor do réu vigora o princípio in dubio pro reo, o fato que
apresentar dúvida razoável quanto à sua ocorrência não pode ser considerado
provado, e, por fim, o acusado tem direito a ter seu caso julgado em prazo razoável.
Da para ver que tudo fica bem mais nítido
quando olhamos um fato por mais de uma vez. E acusar uma pessoa não é tarefa
fácil. Aquela juíza apenas aposentou-se, com proventos proporcionais a seu
tempo de serviço. E isso, de fato, não parece punição. Mas, na verdade, como
Otelo, que matou a amada Desdêmona, existem fantasmas que a rondam, mas que ela
não veria se tivesse respeitado o princípio da presunção de inocência.
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