Sem Democracia o mundo padece

Vivemos uns para os outros, cercados pela necessidade mutua de compreensão e respeito. O mundo somente pode ser justo se os mais fortes tiverem a compreensão de que sua força está justamente em ajudar os outros. Um país se faz com homens, mulheres e crianças que têm no olhar erguido a paz da soberania.

segunda-feira, 3 de março de 2014

A PRESUNÇÃO DE CULPA NO DIREITO BRASILEIRO


Por Sidiney Breguêdo



Nenhum Estado pode ser chamado de democrático de direito se aceita a presunção de culpa. Aceitar tal assertiva talvez seja tão grave quanto aceitar tribunais de exceção. E nem a primeira, nem o segundo são aceitos no nosso Direito. Caso fosse possível, certamente, seria comum tragédias gregas, como aquelas vistas nos textos de William Shakespeare. Numa delas, Otelo mata a mulher amada porque acreditava que ela o estava traindo. Todavia, o grande general foi vítima de um embuste tramado pelo invejoso personagem Lago, que teve a parceria da própria mulher. Mas esta, arrependida, acaba por revelar a trama a Otelo, que ao saber que a amada nada havia feito se mata também.
Esta tragédia não existe somente na literatura. Ela acontece em nossos dias, acima de tudo quando nos esquecemos do princípio da presunção de inocência. Basta ver a decisão levada a efeito pela juíza Clarice Maria de Andrade Rocha, aquela que mandou prender numa cela uma menina de 15 anos na companhia de vinte e oito outros marginais do sexo masculino, na cidade de Abaetetuba, no Pará. Depois ela foi punida, ou seja, aposentada, nos termos da decisão do CNJ, como segue:
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR N° 0000788-29.2009.2.00.0000
Rel. CONSELHEIRO FELIPE LOCKE CAVALCANTI
Requerente: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerida: Juíza CLARICE MARIA DE ANDRADE
Assunto: ATUAÇÃO FUNCIONAL DE MAGISTRADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARÁ
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ. INFRAÇÕES AOS DEVERES FUNCIONAIS DA MAGISTRATURA. CONFIGURAÇÃO.
I – O Juiz de Direito ao examinar o auto de prisão em flagrante delito torna-se responsável pela prisão levada a efeito bem como pela regularidade do encarceramento do preso. (grifei)
II – Impossibilidade de manutenção de presa do sexo feminino em carceragem única ocupada por detentos do sexo masculino.
III – Descumprimento do preceito fundamental contido no artigo 5º, inciso XLVIII, da Constituição Federal.
IV – Utilização de documento ideologicamente falso com fim de justificar a grave omissão perpetrada.
V – Infringência ao artigo, 35, incisos I e III, da LOMAN.
VI – Procedência do Procedimento com a aplicação da pena de aposentadoria compulsória, com proventos proporcionais ao tempo de serviço, de acordo com os artigos 28 e 42, V, todos da Lei Complementar nº 35, de 14.03.79.
No entanto, aquela pobre garota paraense já havia sido violentada pela turba estúpida dos encarcerados, o que gerou para ela um tratamento numa clínica próxima de Brasília. A garota caiu de vez no mundo do crime. E de quem terá sido a culpa, senão daquela juíza tão distante do princípio da presunção de inocência? Certamente, se Otelo tivesse examinado melhor as provas, e ele escutasse as súplicas de sua mulher, a personagem Desdêmona, não teria a matado. O ciúme não o teria ferroado, fazendo-o destruir a possibilidade de alcançar a verdade.
É por isso que o princípio da presunção de inocência é tão importante. Está previsto no art. 5.º, LVII da Constituição Federal de 1.988, nestes termos: “Ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória”. É verdade que existe as prisões cautelares, aquelas que podem ser feitas em flagrante, preventivamente ou temporariamente. Nenhuma destas três prisões estaria a desafiar tal princípio. Isso se a liberdade não fosse a regra, mas é. Sendo a liberdade a regra não podemos aceitar prisões com o mínimo de fundamentação, calcadas apenas na fundamentação jurídica e dissociada dos fatos concretos da vida.
Quanto a isso, tudo bem, até certo ponto. É preciso buscar o equilíbrio entre a liberdade do indivíduo e o direito de punir do Estado. Senão desceremos desgovernados a vala do casuísmo. Assassinaríamos o que há de mais precioso em nosso tempo. Não há vida digna sem liberdade. Razão pela qual Otelo torna-se um parâmetro adequado para tal arrazoado. Porque, da mesma forma que não é absoluta a presunção de inocência, também é totalmente sem nexo a presunção de culpa. E, com esta presunção de culpa, a agressão do Estado antes do trânsito em julgado.
Ora, se Otelo continua a ser lida e encenada tanto tempo após William Shakespeare a escrever, isso não se deve apenas ao fato de o texto ser primoroso. A verdade é que a peça toca em questões dramáticas da nossa vida cotidiana. De forma que está sempre em evidencia. O nosso Direito Penal tratou de facilitar a utilização de meios coativos contra o infrator penal, mesmo que ele seja mero suspeito. Portanto, são legítimos, durante a persecução penal, o constrangimento do inquérito policial, os interrogatórios e as prisões cautelares. Todavia, as medidas próprias da execução não podem ser aplicadas ao acusado. É difícil entender isso, até mesmo porque após a prisão não parecem ter outras medidas mais graves. Todavia, é da presunção de inocência que decorre que o sujeito somente pode ser processado pelos crimes previstos na lei, tem assegurado o devido processo legal, não pode ser julgado sem citação regular, a favor do réu vigora o princípio in dubio pro reo, o fato que apresentar dúvida razoável quanto à sua ocorrência não pode ser considerado provado, e, por fim, o acusado tem direito a ter seu caso julgado em prazo razoável.
Da para ver que tudo fica bem mais nítido quando olhamos um fato por mais de uma vez. E acusar uma pessoa não é tarefa fácil. Aquela juíza apenas aposentou-se, com proventos proporcionais a seu tempo de serviço. E isso, de fato, não parece punição. Mas, na verdade, como Otelo, que matou a amada Desdêmona, existem fantasmas que a rondam, mas que ela não veria se tivesse respeitado o princípio da presunção de inocência.

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